A parlamentar brasileira Erika Hilton decidiu não embarcar para a Brazil Conference at Harvard & MIT após a embaixada dos Estados Unidos desconsiderar seus documentos oficiais e emitir o visto diplomático com o gênero masculino. O episódio, que envolve uma deputada em missão oficial, levantou questionamentos sobre o respeito à soberania brasileira e sobre a validade dos documentos emitidos pelo Estado.
O caso reacende o debate sobre políticas internacionais e identidade de gênero. Hilton solicitou providências ao Ministério das Relações Exteriores e anunciou articulação jurídica internacional, apontando que a negativa de sua identidade representa não apenas transfobia, mas violação diplomática.
Gênero legal ignorado por decisão diplomática
A emissão do visto diplomático contrariou documentos legais da deputada, como a certidão de nascimento retificada e o passaporte brasileiro. Ambos atestam sua identidade de gênero feminino. A embaixada americana, porém, optou por registrar o sexo masculino, contrariando o princípio da reciprocidade diplomática.

A justificativa da embaixada baseou-se na Ordem Executiva 14168, vigente desde janeiro de 2025, sob o governo Trump, que determina o reconhecimento de apenas dois sexos, definidos desde o nascimento. Essa diretriz exclui identidades trans e não-binárias, inclusive aquelas legalmente reconhecidas em países parceiros.
A Constituição brasileira reconhece a identidade de gênero como direito da personalidade, e o Supremo Tribunal Federal garantiu, desde 2018, a possibilidade de alteração do registro civil independentemente de cirurgia ou decisão judicial. Documentos brasileiros retificados gozam de fé pública e validade internacional.
Impactos diplomáticos e soberania em xeque
A deputada solicitou uma audiência com o chanceler Mauro Vieira para tratar do caso como um incidente diplomático. Erika Hilton argumenta que, ao recusar reconhecer seus documentos oficiais, os Estados Unidos desrespeitam a soberania do Brasil. Ela considera que houve violação da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, que garante respeito às comunicações e documentos dos representantes de Estado.
O Itamaraty ainda avalia se formalizará uma resposta diplomática. Enquanto isso, parlamentares aliados cobram posicionamento firme do governo brasileiro. Segundo Hilton, “a transfobia institucional não deve ser tolerada, principalmente quando compromete o exercício de uma função pública internacional”.
A parlamentar havia sido convidada para o painel “Diversidade e Democracia”, em evento acadêmico que reúne autoridades políticas, pesquisadores e estudantes de diferentes países. Com a negativa de sua identidade, optou por cancelar sua participação, denunciando o episódio como um exemplo da política discriminatória do atual governo dos EUA.
Legislação brasileira vs. política americana
Especialistas ouvidos pela imprensa apontam que o caso evidencia o atrito entre legislações nacionais em contextos diplomáticos. No Brasil, a Resolução nº 1.270 do CNJ e a decisão do STF asseguram que pessoas trans têm o direito de alterar nome e gênero nos documentos. Isso obriga os órgãos públicos, inclusive o Itamaraty, a garantir esse reconhecimento em relações internacionais.
Nos Estados Unidos, a mudança na política de reconhecimento de gênero foi determinada por uma ordem executiva assinada por Trump, que define sexo como um atributo imutável do nascimento. De acordo com a norma, a embaixada passou a adotar critérios que não consideram documentos emitidos com base em legislações de outros países que reconhecem a identidade de pessoas trans.
O professor de Direito Internacional da UFRJ, André de Lima, ressalta que “o princípio da boa-fé e da reciprocidade deve prevalecer nas relações consulares. Quando documentos válidos são ignorados, a integridade do sistema diplomático se fragiliza”.
Transfobia de Estado e violações de direitos
O termo “transfobia de Estado”, utilizado pela deputada, remete à prática sistemática de negar direitos a pessoas trans por políticas públicas e legislações oficiais. A Human Rights Watch já havia apontado em relatório de 2024 que os EUA retrocederam em políticas de proteção à população LGBTQIA+ após mudanças promovidas no atual governo.
Segundo a ONG Transgender Europe, mais de 60% das pessoas trans que viajam internacionalmente relataram algum tipo de violação de seus documentos ou identidade em postos consulares nos últimos dois anos. Casos como o de Hilton ganham notoriedade por envolverem autoridades diplomáticas e parlamentares, mas o problema é mais abrangente.
O fato de a mesma embaixada americana já ter emitido um visto em 2023 com base na identidade feminina da deputada levanta suspeitas sobre seletividade e mudança de critérios. Erika classificou o ocorrido como “higienismo institucional” e criticou o impacto sobre outras pessoas trans brasileiras que possam enfrentar o mesmo constrangimento.
Conferência acadêmica marcada por ausência forçada
A Brazil Conference at Harvard & MIT, palco de debates sobre democracia e inclusão, teve sua programação marcada pela ausência forçada de Erika Hilton. A recusa do visto condizente com sua identidade impediu sua participação como palestrante em painel sobre diversidade, esvaziando um espaço de representação legítima.
Organizadores do evento lamentaram o ocorrido. A ausência da deputada provocou reações críticas por parte da sociedade civil e movimentos de direitos humanos. O episódio gerou mobilizações para exigir mudanças nos procedimentos diplomáticos entre os dois países.
Hilton segue articulando iniciativas no campo jurídico internacional. Uma das possibilidades avaliadas é recorrer a cortes interamericanas de direitos humanos para apontar a responsabilidade dos Estados Unidos na violação de tratados e convenções multilaterais ratificados por ambas as nações.